Chuvisco e Outros Cães
Textos de Domingos Pellegrini
Publicados no jornal Gazeta do Povo
 
 

Chuvisco no Céu
28/01/2007

Ela passa a tarde lendo revistas espíritas, à noite me informa:

— Já é certo que ios bichos, principalmente os cachorros, também vão para o Céu.

— É, mãe? Que bom!

Ela fala olhando longe:

— Pois é, quando eu for pra lá, vou procurar o Chuvisco... Aí vou dar banho nele, vou limpar aquela ramelinha que ficava nos olhos dele, vou chamar um anjo pra me ajudar a dar também uma poda nele, você sabe, pra podar o danadinho alguém tem de ajudar segurando.

Já vai mexendo as mãos como fazendo o que diz:

— Vou podar pouco no corpo, viu, Chuvisco, senão você fica muito magrinho. E vamos cortar esses pelos caindo no olho, assim, pronto. Olha que bonitinho que ficou o Chuvisco!

Sori para as mãos coalhadas de sardas da velhice, Chuvisco está ali. Falo só quando ela me olha:

— Mãe, se os cachorros vão pro Céu eles também têm alma, né?

— Claro! Pois se não tivessem alma, como é que iam ser tão companheiros da gente! Cachorro não é bicho, é quase gente!

— Não precisa ficar brava...

— Claro que cava, cachorro cava pra esconder osso! Melhor que gente que cava pra esconder dinheiro, arma, sem falar nesse buracão que abriram lá no metrô de São Paulo! Claro que cachorro cava, que tem de errado chachoro cavar?

Deixo assim, mas ela não se conforma:

— Por que te incomoda cachorro cavar?

Tento explicar que não me incomoda:

— Até aproveito alguns dos buracos, que os cachorros cavam pela chácara, para plantar mamão!

— Que que você faz com a mão?

Melhor voltar ao começo da conversa:

— Por que a senhora tem certeza que vai pro Céu? — pergunato soletrando bem cada sílaba, bem perto do seu ouvido, e então ela fica novamente olhando longe, balançando a cabeça até concluir:

— É, não sei se vou chegar lá no Céu. Mas você não acha que mereço? Posso ter cometido muito pecado, mas o que já sofri nesta velhice não vale como purgatório?

— Deve valer, mãe. Mas a senhora não devia contar como certo que vai pro Céu, porque isso pode desagradar Deus, sabe, parece arrogância.

Ela fecha a cara, até que estrila:

— Mas Deus também não pode perdoar?! Eu já perdoei tanta coisa de tanta gente!

Só não exija que Deus perdoe né, mãe...

De novo ela fecha a cara, fica olhando longe até sorrir:

— Quando chegar no Céu, vou falar: oi, São Pedro, cheguei, se tem muita coisa pra arrumar aí, pode contar comigo, e pronto, decerto vão me perdoar de tudo, porque quem é que não ajuda quem chega querendo ajudar?

— Mas, mãe, isso não será uma espécie de suborno?

— Quem é corno, São Pedro?! Por que você fala uma besteira dessas? Deus castiga!

Depois que explico, ela se acalma, respira fundo aliviada, aproveito para apertar mais o parafuso:

— Se o Céu é perfeito, mãe, o que é que a senhora poderia ajudar a arrumar?

Os olhos piscam enquanto ela pensa, até me encarar brava:

— Você pensa demais, não é bom pensar demais! Quem pensa demais acaba com doença da cabeça! Eu quero ajudar, ué, a vida inteira ajudei tanta gente, por que não vou ajudar no Céu? Se não puder ajudar ninguém lá, se não puder fazer nada, então não quero Céu nenhum!

Digo que isso pode ser uma blasfêmia, ela se irrita:

— Não quero saber se é fêmea, se é macho, eu quero é continuar fazendo coisas, ajudando gente, já chega tudo que não poso fazer por causa da tal velhice, que é uma chatice, isto sim!

Toma fôlego, desabafa:

— Eu quero é enocontrar o Chuvisco, nem que seja no inferno!

— Mas mãe, aí ele também vai estar sofendo!

— Ah, é! — ela dá um tapa na boca, os olhos umedecem e fala baixinho: — Desculpa, Chuvisco, você vai pro Céu, sim, nem que eu tenha de meter o pé na porta de São Pedro e...

Fica sorrindo, olhando longe, decerto já vendo Chuvisco a correr pelo Céu entre nuvens e anjos.
 
 

Cachorros no Céu
15/07/2007

Não acredito em Céu, acredito é que, se não houvesse morte, nem haveria religião.

Mas minha mãe não só acredida no Céu, como acredita que os cachorros também irão para lá. Depois que Chuvisco se foi, ela passou a se interessar pelos cachorros “de fora” (que vivem no quintal, Chuvisco vivia dentro de casa).

Mal anoitece, ela começa a perguntar se fiz a comida deles. Como ela anda lembrando de tudo que lhe aconteceu na infância e na mocidade, com detalhes, mas esquece tudo de ontem ou de agora há pouco, tenho novamente de lhe explicar, como expliquei ontem e anteontem e muitos dias antes, que a comida dos cachorros está pronta sim, e que darei a eles depois que ela for dormir.

Ela fica satisfeita, volta a ver o telejornal, até que aparece no noticiário alguma coisa que lembra cachorro. Pode ser uma enchente, um terremoto, um desastre qualquer, pronto, ela volta a lembrar:

— Fez a comida dos cachorros?

Vou à caixa de isopor onde guardo a comida dos cachorros cozida de manhã, o arroz com legumes, misturo com carne moída, levo o bacião para ela ver, fica satisfeita, até lembrar novamente:

— E a comida dos cachorros?

Então, quando ela vai deitar, passando pela porta da sala, dou comida para os cachorros na varanda, para ela ver. Fica feliz, parada no andador, vendo Pingo, Bravo e Leta com os focinhos enviados nas vasilhas. Depois, já na cama, me chama para dizer, pegando na mão:

— Cuida bem deles. Do jeito deles, eles vão orar por você!

Resolvo espichar o assunto, sentando na beirada da cama para lhe falar alto perto do ouvido, porque ela está bem surda:

— Por que eles vão orar por mim?

— Para você ir pro Céu junto com eles.

— A senhora acha que cachorro também vai pro Céu?

— Mas claro! Tem gente que não devia ir, mas cachorro...

— Mãe, pra ir pro Céu não é preciso ter alma?

— E você acha que eles não têm?! É só olhar nos olhos deles e você vê, eles olham com amor, com meiguice, se não tivessem alma não iam olhar assim!

— Então gato também vai pro Céu, né? Porque gato também tem um olhar bem doce e...

— Não, gato não, nunca gostei de gato, bicho interesseiro e fingido. Você fica bravo com um gato, ele te ignora depois, fica se fazendo de difícil. Cachorro, não, apanha agora, depois você estende a mesma mão que bateu, ele vem lamber de rabo abanando. Cachorro é bicho santo, gato é bicho safado.

— Mas os gatos também não foram criados por Deus, mãe? Se os cachorro têm alma, por que os gatos não teriam? E se têm alma, por que não mereceriam o Céu também?

— Porque o Céu é lugar de paz, e os gatos iam ficar provocando os cachorros pra brigar, já viu como gato provoca cachorro?

Ela se satisfaz com os próprios argumentos, repete que o Céu não é lugar pra gato, mas que os cachorros todos vão estar lá, o Pingo com seu olhar esperto, o Bravo com seu olhar doce, a Leta com seu olhar alegre, o Chuvisco com seu olhar... aí fica com os olhos úmidos lembrando.

— Será que o Chuvisco já foi pro Céu?

— Claro, mãe, tá lá esperando a senhora.

Mas ela não é boba, me olha com meio sorriso:

— Como é que você sabe?

— Eu não sei, mãe, eu acredito - minto e ela balança a cabeça no travesseiro, olhando longe, sussurra que claro, Chuvisco vai estar lá, com o rabinho abanando naquele jeito doidinho dele, correndo pra lá e pra cá e...

— Você acha que estão dando comida direito pra ele lá?

— Mãe, no Céu ninguém precisa comer, lá não existe mais fome, sede, frio, nada disso, não é?

É, ela concorda achegando os cobertores no queixo, mas de repente o olhar faisca:

— Pena que eles não vão ter fome, cachorro gosta tanto de comer! Tomara que lá tenha bastante coisa pra eles cheirarem, gostam tanto também. Também tomara que não achem chato o Céu.

Fecha os olhos. Espero. Logo começa a ressonar, sorrindo. Pingo deve estar brincando com São Pedro. Chuvisco deve estar correndo de nuvem em nuvem. Bravo deve estar latindo de ciúme, e Leta, ah, Leta tão arisca, deve estar pela primeira vez lambendo a mão desta mulher que dorme sorrindo.

Obrigado, cachorros. Vocês merecem o Céu.



 
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