Igor — Paixão feita de ternura densa e permanente
Textos de Millôr Fernandes
Publicados no jornal Gazeta do Povo
 


O Melhor Ser Humano

05/11/1995

Magri andou perto, mas não tinha razão total quando afirmou que o cão é um ser humano como outro qualquer. Na afetividade e na lealdade o cão é muito mais do que qualquer ser humano. Igor, Poodle de minha filha Paula, conseqüentemente meu, é uma paixão feita de ternura densa e permanente. Sem querer nada em troca, a não ser carinho, conversa e, mais do que tudo, presença. Seus olhos dizem sempre: "Por favor, não me deixa. Nem um minuto. Não sei viver sem você."

Logo que ganhamos o Toy poodle (*), olhando para ele um dia, e sabendo que cada ano de minha vida corresponde a aproximadamente sete da dele, veio-me incontida angústia: "Céus!, se eu viver mais dez anos, esse cão, essa graça, será mais velho do que eu."

Ulrich Klever, zoólogo especializado em, e apaixonado por, cães, e Monica Wegler, extraordinária fotógrafa, fizeram um belo livro, ao mesmo tempo científico e amoroso, sobre 60 das espécies mais populares de cães: The Complete Book of Dog Care. Barron's, 178 páginas, $ 12.95.

Traduzo, concordando plenamente, "As Dez Coisas que um Cão quer de Sua Gente." Gente, vejam bem, não somos donos. Somos deles, como eles são nossos.
 

1. Minha vida deve durar entre 10 e 15 anos. Qualquer separação de você será muito dolorosa para mim.

2. Me dê algum tempo para entender o que você quer de mim.

3. Tenha confiança em mim — é fundamental pro meu bem-estar.

4. Não fique zangado comigo por muito tempo. E não me prenda em nenhum lugar comio punição. Você tem seu trabalho, seus amigos, suas diversões. Eu só tenho você.

5. Fale comigo de vez em quando. Mesmo que eu não entenda as suas palavras, compreendo muito bem a sua voz e sinto o que você está me dizendo.

6. Esteja certo de que, seja como for que você me trate, isso ficará gravado em mim para sempre.

7. Antes de me bater, lembre sempre que eu tenho dentes que poderiam ferí-lo seriamente, mas que eu nunca vou usar contra você.

8. Antes de me censurar por estar sendo vadio, preguiçoso ou teimoso, pergunte antes se não há alguma coisa me incomodando. Talvez não esteja me alimentando bem. Pode ser que esteja resfriado. Ou é apenas meu coração que está ficando velho e cansado.

9. Cuide bem de mim quando eu ficar velho; você também vai ficar.

10. Não se afaste de mim em meus momentos difíceis e dolorosos. Nunca diga: "Prefiro não ver" ou "Faz quando eu não estiver presente". Tudo é mais fácil para mim com você do lado.
 

P.S. Reservas apenas para o tópico 5. deve-se falar sempre com o cão, conversar com ele o tempo todo, zombar dele, enfim, fazer com ele tudo que uma pessoa de sensibilidae e bom humor faz normalmente com as pessoaas que ama.

(*) O Poodle praticamente não se interessa por outros cães. Gosta de gente e de ser o centro das atenções. O escritor austríaco Peter Scheitlen escreveu sobre ele há um século: "É o cão perfeito. tem personalidade, originalidade, jovialidade. É todo alma."

Millôr Fernandes é jornalista, mas não é homônimo do outro com o mesmo nome.
 

Nota: Antônio Rogério Magri foi Ministro do Trabalho e da Previdência Social entre 1990 e 1992 (Collor); ele usou um carro oficial para mandar sua cadela Orca ao veterinário e quase foi linchado pela imprensa e pela oposição por causa disto. Sua justificativa entrou para a história: "Cachorro é um ser humano como outro qualquer!"

Igor e os Astronautas Russos
30/06/1996

Igor, meu poodle-toy, tem esse nome russo. Russo, tirando os tiranos de toda a sua história, é gente de convívio, povo do dia-a-dia. Ainda hoje, suspensa a capa do Estado que encobria o país verdadeiro, vemos ressurgir as velhas babushcas e os velho bêbados e os velhos mujiques que serviram a Gogol, a Dostoievsky, a Catarina, a Grande (acrescentem o substantivo que quiserem)!

Por que meti meu Igor com os russos? Porque Igor só quer saber das pessoas que o cercam, e não sabe viver sem elas. Noutro dia, ficou sozinho em casa, durante quatro horas, das oito à meia-noite. Durante essas quatro horas — quanto são quatro horas para um animal que envelhce sete anos enquanto envelhecemos um? Vinte e oito — rodou pela casa feito um desesperado: "Esqueceram de mim!" O sentimento de abandono deve ter sido terrível. Estava perdido no espaço, quase todo branco, do grande apartamento, rodando sem esperanças. Quando chegamos todos, ele girou pela casa, totalmente alucinado, rodou em torno de si mesmo, saltou em cima de um e outro, querendo a proteção e o carinho de todos e de cada um, procurando agradar a todos ao mesmo tempo: "Não me deixem! Não me deixem mais! Pelo amor de Deus, nunca mais me deixem sozinho!"

Lá em cima, abandonados no espaço, estão os Igores-astronautas, enviados pelos ainda senhores da Rússia, os sátrapas de sempre, para experiências científicas. Ficaram dois meses lá em cima. E agora têm que ficar mais 40 dias, porque o governo, o Estado, não tem dinheiro para recuperá-los. Ponham-se na pele dos pobres camponeses — repito, russos seram sempre camponeses, mesmo os mais ilustres, basta olhar Tolstoi, Stalin, Soljennitzyn, Gorbatchov, Ieltsin — sentindo o desafeto daquilo que sempre acreditaram — a Mãe Pátria. Ou, daqui de baixo, agucem o ouvido. Uma noite dessas ouvirão, vinda da infinta solidão do espaço um ganido de angústia pedindo socorro e afeto. Tenho certeza de que o meu Igor, de baixo da cama onde passa as noites, compreenderá essa angústia melhor do que ninguém, e responderá ao apelo distante com um longo latido, solidário e humano.



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