Um Réquiem Para Lucky
René Ariel Dotti


Um cachorro de estimação sepultado há dois meses é dono do túmulo mais visitado do cemitério Municipal de Curiúva. Os moradores da cidade de 13 mil habitantes (284 quilômetros ao norte de Curitiba) não voltam para casa sem conferir onde os ossos do cão foram depositados. A sepultura de cimento, sem ornamentação nem epitáfio, protege os restos mortais de Izaura Miranda de Assis Paula, que morreu em 1994, aos 83 anos, e de Lucky, um Lulu da Pomerânia que lhe fazia companhia". Com essa introdução, o repórter José Rocher apresenta a inusitada matéria publicada na Gazeta do Povo do dia 14. Sob o título "População quer exumação do cachorro",  desfilam variadas reações das pessoas da cidade, a começar pelo coveiro que, ao descobrir tratar-se de um animal dentro de um pequeno caixão branco, recusou-se a fazer o serviço: "Não está certo, animal de estimação não é gente".  O preconceito deste trabalhador, que colabora para que a sentença bíblica "és pó e ao pó tornarás" seja literalmente cumprida, não foi muito diferente do seu colega de profissão que, à beira do túmulo onde seria enterrada a triste Ofélia, resmungava para o companheiro de ofício: "E deve ser sepultada em terra santa aquela que voluntariamente conspira contra a própria salvação?" Ao que o outro respondeu, absolvendo o gesto suicida da infeliz apaixonada de Hamlet: "Posso dizer-te que é para ela. Portanto, cava logo a sepultura que vai recebê-la. O comissário decidiu que o enterro seria cristão" (Shakespeare, Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, ato V).

No caso de Curiúva, a reportagem conta que a advogada Selma Miranda de Paula, filha da finada Izaura, resolveu ceder um lugar no cemitério para Lucky "porque amava o cão como se fosse seu filho." E sustentou, com razão, que em muitas cidades existe um espaço para acomodar os restos mortais dos animais de estimação. Ela cuida de pássaros e cães de raça e viveu 12 anos com o seu Lulu da Pomerânia, apesar da diabetes e dos problemas cardíacos e pulmonares sempre atendidos por veterinários de Goiás, Minas Gerais e do Paraná.

Felizmente, o prefeito Tobias de Souza de Oliveira ouviu o assessor de gabinete Keishi Asakuda e desistou da ideia de exumar Lucky, diante da generosa imprevisão do Código de Posturas do Município. "A família pagou e tem domínio sobre o lote do cemitério", ponderou sabiamente o auxiliar.

Existe algo mais entre a decisão da advogada e os éditos municipais que garantem a última morada de Lucky. É uma espécie de testamento pelo qual a sra. Izaura manifestou a vontade de que o animal de carinho fose sepultado no mesmo túmulo. Esse foi o depoimento da secretária da Casa Paroquial, Clemilda Terezinha da Silva.

Um universo de sentimentos e reações envolveu o episódio de Curiúva e a vontade da mãe, transmitida à filha, para deixar o que sobrou de Lucky num local onde se possa dizer, também à sua memória como se diz dos humanos que já partiram: requiescat in pace. Acredito que a advogada pensará num epitáfio para mostrar que a morte não separou a lembrança da convivência entre Izaura e Lucky. Será bem melhor que tantas outras inscrições que lembram a pergunta feita por uma criança ao seu pai, após ler os epitáfios num cemitério: "Papai em que canto se enterram as pessoas ruins?"

O cemitério "São Francisco de Assis". Eis aí uma propaganda capturada através da Internet (www.cemiteriodeanimais.com.br), cujo site contém variadas indicações e evoca  exemplo da italiana Adriana Sandonati que reside em Bunos Aires, onde mantém um cemitério de animais.

Agora fiquei em dúvida entre o exemplo de dona Izaura e a escolha de um local separado para devolver futuramente à terra os meus amigos diários e inseparáveis: Tiquinha, Carlitos e Pedrita.

Eles compõe o território sagrado da afeição recíproca que nenhuma vontade humana pode violar porque revelam, com seus olhos e seu sorriso, as frinchas da paliçada que me permitem ver e sentir um outro lado melhor da vida e do mundo.

René Ariel Dotti, advogado e professor universitário, foi secretário de estado da Cultura do Paraná.
 


Publicado na Gazeta do Povo em 20/06/2002
 

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