Testamento de Um Cão
Frank Reinshstein

Minhas posses materias são poucas e eu deixo tudo para você...

Uma coleira mastigada em uma das extremidades, faltando dois botões, uma desajeitada cama de cachorro e uma vasilha de água que se encontra rachada na borda.

Deixo para você a metade de uma bola de borracha, uma boneca rasgada que você vai encontar debaixo da geladeira, um ratinho de borracha sem apito que está debaixo do fogão e uma porção de ossos enterrados no canteiro de rosas e sob o assoalho da minha casinha.

Além disto, eu deixo para você a memória, que álias são muitas. Deixo para você a memória de dois enormes e meigos olhos cor de mel, de um nariz molhado e de choradeiras atrás da porta.

Deixo para você uma mancha no tapete da sala de estar junto à janela, quando nas tardes de inverno eu me apropriava daquele lugar, como se fosse meu, e me enrolava feito uma bolinha para pegar um pouco de sol.

Deixo para você um tapete esfarrapado em frente à sua cadeira preferida, o qual nunca foi consertado com o tipo de linha certa... isso é verdade. Eu o mastiguei todinho, quando ainda tinha 5 meses de idade, lembra-se?

Também deixo para você as memórias da primeira surra que levei quando comi seu celular e também todo o meu esquecimento...

Deixo para você um esconderijo que fiz no jardim debaixo dos arbustos perto da varanda da frente, onde eu costumava me esconder do sol nos dias de verão. Ele deve estar cheio de folhas agora e por isso talvez você tenha dificuldades em encontrá-lo. Sinto muito!

Deixo também, só para você, o barulho que eu fazia ao sair correndo sobre as folhas de abril, quando vagabundeávamos pelo sítio.

Deixo ainda a lembrança de momentos pelas manhãs, quando saíamos juntos pela margem das lagoas do condomínio e você me dava aqueles biscoitos coloridos. Recordo-me de suas risadas, porque eu não consegui alcançar aquele coelho impertinente.

Deixo-lhe como herança minha devoção, minha simpatia, meu apoio quando as coisas não andavam bem, meus latidos quando você levantava a voz aborrecido... e minha frustração por você ter ralhado comigo todas as vezes que eu colocava o nariz debaixo da cauda.

Eu nunca fui à igreja, nunca escutei um sermão e sem ter dito sequer uma palavra em minha vida, deixo para você lições de paciência, de tolerância, de amor e de compreensão.

Sua via tem sido mais rica porque eu vivi.


Anton Tijolinho me deixou muitas coisas... sua bolinha vermelha, a vasilha azul de comida, as caminhas fofas, as roupinhas gastas, puídas pelos anos de uso, e traquinagens. Mas mais do que isto, ele me deixou SUA memória; como prometi a ele, jamais o esquecerei!

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